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OS PASSOS

O celular despertou… desta vez, às 5h30, pouco mais cedo do que o habitual para que eu tivesse tempo suficiente de organizar tudo. Quis nem abrir a porta do quarto para adiar a enxurrada de perguntas que mainha me faz rotineiramente todas as manhãs: “vai tomar café?”, “vai trabalhar agora pela manhã onde?”, “tu vai trabalhar com esta roupa, menino?”, “que horas tu chega em casa?”. Não queria perder o foco. Afinal, tínhamos marcado com Vitória Kelly às 10h em sua casa, no Bairro de Afogados, no Recife.


No roteiro, revisei as perguntas, acrescentei outras e, por fim, compilei todas questões pensadas por mim e por minha companheira de pauta. O relógio já marcava 7h30, quando Maíra me deu bom dia pelo WhatsApp para sinalizar que havia acordado e que também se organizava para, enfim, saírmos. No entanto, para garantir que tudo desse certo, fiz um check list de todos os equipamentos que iríamos usar:


  • cartão de memória: formatado;

  • bateria: carregada;

  • Tripé: ok;

  • celular: carregado


Sobrou pouco tempo para me arrumar e, quando me dei conta, estava atrasado. Sair de Paulista, na Região Metropolitana do Recife, para a Zona Oeste não é tão rápido quanto eu imaginava. Enquanto corria, Maíra fazia a pré-produção da entrevista: ligou para mãe de Vitória; imprimiu o roteiro de perguntas; confirmou endereço; viu o Google Maps para descobrir as rotas mais fáceis e, já impaciente com meu atraso, decidiu que iria na frente e que nos encontraríamos lá. Dei meu jeito de correr sem esquecer nada e, finalmente embarquei no terminal, às 9h40, na linha PE 15 - Afogados, olhando sempre para a direita, na esperança de ver a loja de material de construção citada pela entrevistada como referência. “Pede para descer na parada da Tupan. Minha casa fica por detrás dela”, orientou.


Cheguei 30 minutos após o horário combinado, mas Vitória não aparentou estar chateada. Tirando o carro que passou levantando poeira pela rua que ainda não está asfaltada e uma escola que aparentemente é de ensino fundamental I, a via estava tranquila. Não tinha fluxo intenso de veículos ou pessoas. Facilmente identifiquei a casa pela cor verde do muro - do mesmo jeito que mostrara o Google Street View em imagem captura em agosto de 2017.


Como o lugar não tinha campanhia, liguei para Maíra, que que já estava lá há uns 15 minutos, para sinalizar que havia chegado. Pouco tempo depois, vi uma garota com seus 1,60 m saindo da casa em direção ao portão. Era ela, de cabelos presos, sorriso no rosto, maquiagem feita, vestida de top preto e saia com estampa de flores de girassol amarelo. O bom dia de Vitória Kelly foi acompanhado de simpatia e timidez até porque nunca nos falamos e todo o processo anterior foi organizado pela mãe e assessora da dançarina.


Entrei em seu enorme quintal - que tinha muitas plantas e três pés de árvores, sendo dois deles de jambo, uma das frutas preferidas de Vitória -  para finalmente, chegar na casa propriamente dita, que, se comparada com o tamanho total do terreno, é bem pequena. “Pode entrar, Maira tá no quarto”. Pedi licença, passei pelo terraço, entrei na sala e, a minha direita, logo vi minha amiga sentada na cama do pequeno cômodo. Tirei os sapatos e entrei.


Pra quebrar o gelo enquanto montava os equipamentos, já fui puxando assunto na intenção de deixá-la à vontade. “Que lindo teu quarto” e realmente era… no chão um enorme tapete de veludo que fazia gosto de pisar pela maciez do objeto. À esquerda, seu guarda-roupa de portas espelhadas, à direita sua cama de casal, coberta por uma colcha vermelha da cor da boca ilustrada em um quadro pendurado acima da cabeceira de sua cama, adquirido por R$ 10 por estar um pouco avariado.


- Minha gente, este quadro não é lindo? Todo mundo que vem aqui em casa fica apaixonado por ele. Tentem adivinhar por quanto eu comprei ele. - comentou ela

- Uns R$ 50? - arrisquei

Não, menino! Bem menos… quando digo o valor ninguém acredita - ela riu.

Se o preço foi menor que este, realmente foi muito barato - soltou Maira.

- Eu comprei este quadro por R$ 10. Ele estava sinalizado “com defeito” na loja e, quando eu vi, não acreditei porque as únicas falhas estavam na moldura e eu dei um jeito nisso passando meu lápis de olho. Vocês acreditam? Nem parece, né?!


E, de fato, tinha sido ótima ideia porque não dava para reparar o improviso feito por ela. Tudo estava pronto para começarmos a conversa e, a esta altura, já estávamos a vontade a ponto de eu pedir para ir até a sala desligar a televisão e o ventilador para minimizar ao máximo os ruídos na captação do áudio da gravação. Enquanto Maíra conduzia a entrevista, eu monitorava a parte técnica, acrescentando, de vez em quando, uma pergunta ou outra que não fazia parte do roteiro.


***


Tudo aconteceu muito rápido e eu, hoje com 18 anos, sei que, se não fosse o Brega, minha vida estaria bem complicada. Eu nunca fui de planejar nada. Lembro que durante a infância minhas amigas tinham o sonho de ser médica, enfermeira, dentista, bombeira e, até mesmo, jornalista. Eu nunca tive esses pensamentos. Eu sempre dizia “seja o que Deus quiser, meu amor” e as coisas aconteceram e, graças a Deus, deram e estão dando certo.


Posso dizer que minha carreira como dançarina de Brega-Funk começou do acaso.  Eu sempre gostei de dançar, mas nunca imaginei chegar onde cheguei - e, sinceramente, acho que pessoas como eu também não imaginam. Quem me conhece sabe que eu não posso escutar uma música que tô me mexendo de alguma forma. Em 2016, quando eu tinha 15 anos, decidi gravar um vídeo dançando e inventei de postar no Facebook. Do nada, depois de alguns momentos, Tróia comentou, do jeito dele, algo do tipo “porra, pirralhinha, tu tira onda! Dança muito!”. Eu fiquei sem entender porque eu nem lembrava que eu o tinha na minha rede social. Foi aí que a gente começou a conversar. Na hora eu brinquei com ele e disse que um dia eu dançaria em uma apresentação dele. Porém, ele levou a brincadeira a sério.


- Tu dança alguma coisa? Tu dança com quem?, Tróia me perguntou.

Não, não. Eu não danço com ninguém não. Tu tira onda mesmo!

- Relaxa que qualquer dia eu danço contigo, em uma das tuas apresentações!, brinquei.

- Oxe, ótimo! Você vai mesmo. Diga o dia que você pode ir.

- É o que, menino?! Tais falando sério? - Tenho que falar com minha mãe porque sou menor de idade. Tenho 15 anos.

- Cacete!


A conversa passou. Eu até pensei que a conversa tivesse morgado, mas depois de uma semana ela me chamou de novo no inbox do Facebook. Eu me lembro bem porque ele me convidou pra dançar em uma apresentação dele dois dias depois do meu aniversário.


- Bora dançar comigo em um show amanhã?

- Você tem que falar com a minha mãe. Se ela deixar, eu vou - respondi pensando que ele não teria coragem de falar com ela e o pior: tinha certeza que ela não deixaria eu ir.

- Certo. Passe o número dela.


Ele ligou pra minha mãe e ela já disse logo de cara: “NÃO!”.


- Não, mas é porque ela dança muito e eu tenho certeza que ela vai fazer sucesso.

- Não!

- Por favor! Ela pode se tor… - ele insistia

- Não.


Depois de muito tempo de insistência minha mãe terminou deixando


- Eu vou deixar, mas só se eu ficar indo com ela.

- Fechado, então!


Desse dia em diante, minha mãe sempre me acompanha em quase todos os shows porque ela fica bem preocupada. Em um dia, ela liga mais de dez vezes quando tá trabalhando. E de certa forma eu gosto que ela me acompanhe porque, neste dia mesmo, eu fiquei altamente constrangida quando subi no palco e vi muita gente. Eu não me lembro o nome do local, onde aconteceu minha primeira apresentação, porque neste dia a gente fez uns cinco shows. A única coisa que eu me lembro é que foi em um interior daqui [Pernambuco], que a casa de festa estava lotada e que eu travei na hora.


Não foi fácil pra mim porque eu tinha acabado de completar 16 anos e eu nunca tinha subido em um palco na minha vida. Na época, eu não falava com ninguém. Sempre fui muito tímida. Eu era tão vergonhosa ao ponto de alguém me dar boa tarde na rua e eu abaixar a cabeça pra não ter que responder. Eu cheguei na frente do lugar, a música tava tocando e eu fiquei parada, olhando pra todo mundo. Tróia cantava: “vai descendo, vai descendo, vai descendo… e sobe, sobe, sobe, sobe, sobe…” [trecho da música ‘Vai descendo’, do MC Tróia] os meninos dançando e eu estatelada com vergonha. Na hora, o povo ficou olhando pra minha cara esperando que eu fizesse algo, mas eu tava em choque. Eu olhava cheia de nervosismo pra minha mãe, que estava perto do palco, e ela fazia: “vai menina, dança!”, mas eu não conseguia; fiquei paralisada. Depois de algum tempinho, eu consegui destravar um pouquinho… fiz um passinhos, mas confesso que fiquei morta.


A galera da banda foi super compreensiva comigo. Troinha mesmo tirou onda comigo e tudo: “nervosa né, pirrainha?”. Aí eu fiz: “tô, tô”, respondi bem constrangida. Mas ele fez: “relaxa que depois tu se acostuma”. Agora me pergunte como foi meu segundo show! Eu arrasei com a cara da sociedade, flexionando a tcheca, meu amor! Na segunda apresentação - que aconteceu no Gula Music Bar, no Bairro de Jardim São Paulo, no Recife - tava todo mundo aqui do bairro [Afogados, onde mora] e ninguém sabia que eu ia dançar com Tróia no palco. Quando me viram, todo mundo ficou “é o quê, carai?! Vitória tá dançando com Troinha?”. Eu ficava toda constrangida e respondia “tô”. E a galera filmava, postava e me marcava. Ficou aquela repercussão aqui no bairro porque tudo isso aconteceu justamente no momento em que Tróia começou estourar, em 2015.


Naquele tempo, Tróia só tinha dois dançarinos que era Laurinha e Neguinho e foram justamente eles que me ajudaram a dar os primeiros passinhos e a tirar um pouco a timidez. Neguinho até hoje tá com a gente no ballet, que é composto por eu, ele, Dani Costa e Jameson. Já Laurinha partiu pra outros desafios, mas continua arrasando na dança nacionalmente. Posso dizer que tudo que eu aprendi na dança, eu peguei com ela. Quanto a timidez, eu continuo sendo vergonhosa até hoje - não tanto quando eu comecei -, mas, durante as apresentações, eu meio que esqueço que tenho vergonha e que tem meio mundo de gente ali e começo a me apresentar.  


***


- Fala poxa! Bota o que tem dentro pra fora, visse! - interrompeu a avó em tom de descontração.

- Me dá esse babado aí - pediu Vitória se referindo às gelatinas de banana que Dona Nete - apelido dado a Maria Gilvanete - comia quando entrou no quarto para verificar se tudo estava certo com a entrevista.

- Dou nada - respondeu de imediato, provocando risada de todos após colocar duas guloseimas na boca - Ela é muito tímida. Muito envergonhada mesmo. Ela só é bocão pra cantar e dar os gritos dentro de casa quando tá correndo atrás da mãe ou quando a mãe corre atrás dela. É uma frescura da porra. Agora, quando é pra falar, fica fazendo ri ri ri [simulação de risada]. Já já eu vou aí… falar no teu lugar porque não tô ouvindo quase nada.

- Tá te denunciando, Vitória - brinca Maíra.

- Venha, se chegue - responde a neta na brincadeira.


Dona Nete joga o pacote de doces para Vitória e sai do quarto para que possamos continuar nossa conversa. A esta altura, depois dos vinte primeiros minutos, com certeza já tínhamos tempo suficiente para partir às perguntas mais delicadas, certo? Não, errado! Apesar de ter aprendido que, quanto mais a vontade o entrevistado estivesse, mais ele iria se sentir confortável para revelar situações que talvez ele não falaria para todos, Vitória Kelly ou não se sentia segura em comentar certas situações ou foi bem instruída em não responder detalhadamente às perguntas.


Costumo me colocar corriqueiramente no lugar do outro para saber o que faria se estivesse passando por determinadas situações e confesso que algumas perguntas realizadas não precisavam ser respondidas de fato. Deixo claro que não eram questões que a colocava em situação de vulnerabilidade, mas algumas dúvidas - como faixa salarial - eram indiscretas. No entanto, nós, ocupando o lugar de jornalistas que investiga e que se preocupa com a boa apuração não poderíamos deixar de fazê-las. E Vitória definitivamente não aparentava se incomodar com tais questionamentos, ela simplesmente:


- Não lembro - respondia

- Tu recorda onde foi teu primeiro show? - perguntei na esperança de enriquecer ainda mais meu estudo de campo

- Eu não sei o nome do lugar, mas foi em um interior. Me apresentei lá até um dia desses e pensei “meu Deus! Foi aqui onde tudo começou”

- Ah! Que legal, mas qual foi o interior?

- Também não consigo lembrar.

- Certo. Quanto ao salário, tu poderia dizer?

- Não - respondeu ela em meio a risadas como se julgasse uma pergunta sem noção

- Tudo bem, mas tu se importaria em dizer se vocês recebem por apresentação ou se o salário é mensal?

- Eu recebo por mês mesmo - disse concisamente, não deixando de lado a simpatia que esteve presente do início ao fim do nosso encontro.


Avançamos… Vitória revelou que nunca se inspirou em nenhuma figura artística de fato quando sonhou em ser dançarina, mas contou que desde criança a mãe, Vivian Albuquerque, sempre investia em seu lado esportivo. Inicialmente, fez natação que era pra ver se crescia. “Não deu certo”, disse ela. Entrou no balé, mas Vitória perturbava muito e teve que sair de lá também. Foi pra capoeira, mas ela se encontrou mesmo quando Vivian a inscreveu no Clube de Ginástica Estrelinha Mágica, no Bairro de Boa Viagem, Zona Sul do Recife.


Logo na primeira semana, Vitória causou no treino, que acontecia no Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães (Geraldão), no Bairro da Imbiribeira, também na Zona Sul da capital. Tia Raquel, a dona do clube, ficou encantada com a garota de 12 anos. Depois de observar o talento da menina, ofereceu de cara uma bolsa para que em troca ela competisse nos campeonatos pela escolinha.


Lá, descobriu sua vocação. Pretende voltar, mas confessa que falta tempo. Os finais de semana e principalmente os feriados do ano todo já estão comprometidos com a agenda de shows. A banda faz pelo menos dez apresentações em lugares diferentes. “Por exemplo, na sexta, a gente bota uns três ou quatro. No sábado, fazemos uns cinco. Já no domingo, pode somar uns quatro e assim vai”, relatou.

Os Passos: Inner_about
[Corpo de Baile] O Protagonismo de Vitória Kelly no brega-funk

[Corpo de Baile] O Protagonismo de Vitória Kelly no brega-funk

Os Passos: Video_Widget

***


Tem pessoas mesmo que depois dos nossos shows vem falar comigo e com a banda e a timidez bate na hora, mas eu relevo e tento esquecer esta parte. Agora tem casos passam do limite e aí não tem vergonha certa. Antes mesmo de eu dançar, eu tive algumas dificuldades com homens porque eu sempre tive aquele corpinho bonitinho e, até quando eu tinha entre 8 e 10 anos, eu posso dizer que muito deles já olhavam pra mim de lado. Depois que eu comecei a dançar e fiquei mais conhecida, esses problemas, obviamente, foram aumentando.


Eu não ando de ônibus porque sempre tem homens safados que ficam soltando gracinhas e eu acho isso muito ridículo. Não gosto de pegar Uber sozinha também porque praticamente metade dos motoristas deve me conhecer e eles ficam em cima, fazendo perguntas do tipo: “me fala aí o que você faz”. Pra evitar escutar esse tipo de conversa, eu prefiro não sair de ônibus nem Uber porque é bem complicado.


E nos palcos… isso piora. Quando estou no show, esses mesmos homens safados ficam falando coisas parecidas. São quase as mesmas expressões, só muda as palavras e a pessoa porque o assédio é o mesmo. Uma vez um chegou para me agarrar e disse: “você é maravilhosa, eu sou apaixonada por você”. Ele me segurava muito forte que eu fiquei sem reação. Eu, bem pequenininha, e ele, um monstro de alto. Quase um gigante do meu lado. A sorte foi que o segurança da banda viu e pediu para que ele me soltasse, mas eles são bem complicados.


Tão complicados ao ponto de tocar em partes íntimas sem a minha permissão, mas aí eu vou, discuto, bato boca e isso, quando não vou pra cima de um deles. Recentemente, teve um caso que gerou polêmica nas minhas rede sociais porque eu estava saindo de um show e um cara, que nem me conhecia e que nunca tinha falado comigo, achou que poderia nada menos do que alisar a minha perna e, não achando pouco, tocou no meu peito. Quando eu senti, não me controlei… virei já dando aquela bofetada nele.


No outro dia, quando eu acordei o direct das minhas redes sociais simplesmente estava cheio de notificação do povo me acusando, mas eu fiz isso porque ele não pode chegar que pode tocar no meu corpo sem me conhecer e sem nem falar comigo. Não é assim não, meu amor! Fiz com ele isso e faço com quem se atrever a tocar em mim com segunda intenções porque, se fizer, vai levar também e deixo claro isso nas minhas redes sociais, que também é outro meio que essa galera usa pra ser inconveniente.No Instagram, por exemplo, que é a rede que eu mais uso, sempre homens que fala coisas indecentes, chegando a mandar fotos indecentes inclusive. Querendo ou não pra gente, infelizmente, esses tipos de atitude viraram costume, o que é ridículo.


Por causa dessas situações, eu até sinto medo de usar uma roupa muito curta porque, querendo ou não, o meu corpo, por si só, chama muita atenção e, além disso, eu sou Vitória Kelly, a dançarina, conhecida por várias pessoas e isso chama muita atenção. Eu sempre gostei de usar shortinho, cropped e roupas do tipo, no entanto, eu tenho receio de sair com esses trajes e causar algo pior. Eu não posso postar uma foto de biquíni no Insta que chove milhões mensagens de homens no privado. Odeio ter essa sensação. É ridículo uma mulher deixar de fazer o que quer por causa de outras pessoas que ela nem conhece. É horrível imaginar que essas mesmas pessoas podem fazer mal a outras por besteira, por uma roupa.


***


De longe, escutamos a batida do portão: era sinal de que alguém tinha chegado. Tentei me controlar minha  preocupação, mas admito que fiquei com medo de que o gravador de áudio tivesse captado o ruído e o pior: caso a pessoa que se aproximava falasse alto, com certeza prejudicaria a qualidade de captação. Sentada na cama enquanto conversávamos, Vitória era a única do quarto que tinha a porta dentro do campo de visão.


- Oi, mãe!

- Tudo bom? - Cumprimentou Vivian à todos

- Menina, arrasasse no look hoje, né? - elogiou a dançarina

- E aí pessoal? Como ela tá se saindo? Tá boa? Legal? Tá respondendo direitinho? Porque tem hora que Vitória é só a graça viu. As vezes ela publica alguma coisa no Instagram que eu digo: “não menina, apaga e, por favor, posta de novo porque tem momento que ela sai com cada uma”.


Antes mesmo que completasse cinco minutos de chegada de Vivian na casa, já era possível notar que o alto nível de intimidade entre Vitória e seus parentes não se restringia apenas a sua avó, mas também a sua mãe. Informalidade com certeza é uma palavra que traduz bem a convivência entre todos na casa. Nada de ‘a senhora’ [como a própria Vivian já tinha falado: “a senhora tá no céu”], é ‘você’ ou ‘tu’ mesmo como nos post publicados pela artista no Instagram.


No entanto, o papel de direitos e deveres de cada uma dentro do ambiente familiar pareceu ser bem localizado, assim como o é na maioria das famílias. E Vivian pareceu desempenhar bem a atividade de mãe.


- Oh, Vitória! Eu não tô acreditando no que eu tô vendo a aqui no chão, não - interrompeu a mãe a entrevista.

- O que foi?

- Vitória, poxa! E este lixo aqui no chão? Por que tu não apanhou heim?

- Ai, mãe!

- E estes pratos, Vitória? Por que tu não lavou heim? Quando eu falei contigo, tu não falou que tava arrumando a casa, não foi? O que foi que tu fez heim?


Vitória apenas sorriu, mas não aparentou estar sem jeito ou constrangida com as cobranças da mãe devido, ao que pareceu, ao grau de intimidade das duas. Neste momento, apesar de não está totalmente satisfeito porque gostaria de ter aprofundado ainda mais nossa conversa, as questionário com as perguntas pré-produzidas já estavam quase no fim. E a gente podia sentir que a dançarina estava um pouco dispersa e as interferências, junto com a quantidade de questões, talvez tenham contribuído para isso.


- Vitóooria! - gritou do portão a avó, interrompendo mais uma vez a nossa conversa.

- Eu? O quê?- responde a neta com dúvida se era com ela mesma que Dona XXX se referia

- Chegou um bolo pra tu visse - disse Vivian - Olha, porque tu não botou o ventilador pro pessoal aqui no quarto heim, Vitória?! A casa tá um forno.

- Mulher, te controla que não pode não.

- Ela chegou a colocar, mas é que a gente tá gravando, aí para diminuir os ruídos, decidimos tirar - precisei intervir

- Era bom um ar condicionado né? Mas a fiação daqui de casa é velha pra cacete. Se colocasse um: pow! Ia estourar a casa - comentou Vitória

- Tu pode vir pegar este bolo aqui por favor? Faz logo um storie, marca o pessoal e parte pros meninos comerem. Tem Coca na geladeira. - orientou a mãe.


Por fim, decidimos que estávamos satisfeito e encerramos a entrevista. Tirei o celular do modo avião e de lá fomos até cozinha onde comemos mais ou menos parte do bolo, coberto com pasta americana branca, enfeitado com um laço azul e algumas tiras pretas por cima que não dava muito bem para  identificar o que representava e embrulhado por papel celofane transparente amarrado por um laço verdadeiro de fita amarela com cerca de um quilo. Estava gostoso. Já era por volta das 12h10 e só me dei conta porque comecei a sentir fome e percebi que a hora do almoço já tinha chegado. Conversamos sobre nossos gostos em comum por doces e bolos enfeitados por açúcar [a melhor parte, segundo ela] e outras amenidades que no fundo não eram relevantes.


***


Se eu penso em desistir de ser dançarina de brega pra fazer outra coisa? Todo dia. Na verdade… acho que todo mundo pensa isso. Todos devem chorar todos os  dias e dizer pra si mesmo que não quer mais ou que não aguenta o seu trabalho. A gente como dançarina também costumamos pensar isto porque a gente levar isso com um trabalho normal. O povo imagina que é fácil, mas não é. Nos estressamos, porém a gente descansa, releva e no outro dia tá lá dançando.


No entanto, não é tão simples quanto parece. Eu trabalho a dois anos no mundo do Brega-Funk, por exemplo, e, durante este tempo, eu só tirei férias uma vez. Foi justamento no momento em que Tróia viajou para descansar porque quando ele sai, todo mundo descansa também. Essa foi a única vez que saímos de férias, mas, sinceramente, não vejo necessidade da gente ter um recesso porque, querendo ou não, já temos folga na semana todinha praticamente. Fazemos show uma vez na vida… quem quiser trabalhar, faz alguma coisa, assim como eu e as outras meninas, que trabalhamos como digital influencer, divulgando  lojas e pessoas que nos contrataram.


A única coisa ruim que eu posso dizer em não descansar é ter que abrir mão de certas coisas por causa dos shows. Eu não tenho muito tempo pra tá me divertindo, mas querendo ou não meu trabalho já é uma diversão. Já tô acostumada com minha rotina: trabalho, trabalho, trabalho, casa .Muitas vezes eu deixo de ir pra lugares que eu queria muito ir. Por exemplo, já perdi as contas das vezes que não fui pra festas de amigos ou até mesmo algum show que eu goste por causa da nossa agenda de show. Minhas amigas sempre chamam  “ah, vai ter tal coisa que você gosta ali”, mas eu sempre digo “eu não vou poder ir” porque os feriados e os finais de semanas são os dias que a gente mais se apresenta.


Sem falar que quando estamos fora dos palcos, a gente tem mais trabalho. Eu, por exemplo, faço duas ou três lojas por dia. Tanto eu como a maioria das meninas trabalhamos tirando fotos, como  modelo fotográfica. Vamos pra uma loja, tiramos fotos com alguns looks e postamos nas redes sociais. Como a gente tá crescendo muito nas redes sociais - graças a Deus por isso -, a gente consegue viver disso. É péssimo isso de deixar de fazer coisas que eu queria, mas a gente cansa e não dá pra fazer mais nada.


Mesmo dizendo “poxa”, eu gosto desta vida e da correria que ela traz. Afinal de contas, tudo isso é quem paga as nossas contas, né? Eu cheguei até aqui porque eu quis dar uma vida melhor pras pessoas que eu amo, que são minha mãe e minha vó. Creio, inclusive, que vou conseguir outras coisas melhores dos que eu já consegui pra elas. Desde que eu me tornei dançarina oficial de Brega-Funk, eu já reformei um pouco meu quarto e metade da casa está repaginada. Isso com muito esforço meu e da minha mãe, é claro. Ainda tenho muitos sonhos, o de bailarina já foi realizado. Agora é continuar porque acredito que ainda estou no começo de tudo.

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